Reflexões de Wilson

Vossas Altezas Reais, Digníssimos Membros da Academia Sueca, Excelentíssimos Convidados, minhas senhoras e meus senhores,
Ainda me lembro de uma bela manhã, era um jovem puto preto de 9 anos, como tantos outros criados no ghetto, andava eu pelas ruas de Paço de Arcos, pensando na inexorável aridez da matriz ultra-hedonista que pontificava no pensamento filosófico hodierno e em novos rumos que conduzissem ao ressurgimento da moral enquanto referencial metafísico nas sociedades contemporâneas, quando me apercebo que a teorização pura e simples não poderiam mudar o mundo, teria que incutir nas mentes humanas o desprendimento dos bens materiais que escravizam a sociedade moderna.
Decidi então começar naquele momento a minha obra benemérita. Esgueirei-me por entre as grades de uma janela de um primeiro andar e entrei num quarto. Uma rapariga de vinte e tal anos dormia.
“Tão linda!”, pensei. “Faria dela a minha Julieta, ou pelo menos dar-lhe-ia uma bela queca… Se ao menos já tivesse atingido a puberdade!”
Incapaz de consumar fisicamente o meu amor, decidi então demonstrá-lo por actos, aliviando aquela simpática moça dos seus pertences mais valiosos. Que sorriso resplandecente de felicidade seria o seu quando acordasse e se visse subitamente livre do vil jugo do materialismo!
Mas eis que ela acorda, e começa a gritar histericamente.
Não sabia o que dizer. Decerto que, se me desse ao trabalho de lhe explicar a fundamentação filosófica dos meus actos, já teria os tímpanos perfurados, pois ela não parecia querer parar de berrar. Decidi condensar as minhas razões numa singela frase: “Cala-me essa boca, cabra, senão eu mato-te!”.
Naturalmente que tinha pressuposto estar a falar com uma mulher culta, que saberia que a cabra é um animal de boa-aventurança na astrologia chinesa e que não dizia “eu mato-te” no seu sentido literal, mas antes como uma metáfora para a morte do seu antigo eu consumista e escravo de um quotidiano alienante, para abrir caminho à sua posterior ressurreição como ser livre num mundo novo.
Ela assim não o entendeu. Fugiu pela casa, a sua mãe ameaçou-me com uma arma. Aterrorizado com quanta maldade cabia nos corações humanos, fugi. Senti-me como o homem que tenta tirar os companheiros da gruta, da alegoria de Platão. Fez queixa de mim à polícia, que felizmente teve o bom-senso de não me impor castigo rigorosamente nenhum. Afinal ainda havia gente boa neste mundo!
Este episódio não me desmotivou. Aliás, senhoras e senhores, neste momento em que tenho a honra de receber perante vós o prémio Nobel da Medicina de 2031 por ter inventado a cura para o cancro, queria dedicar esta descoberta a essa rapariga, e fazer sinceros votos para que jamais ela precise da minha descoberta. Porque quem ama a humanidade como eu amo, ama até a quem lhe quer mal.
Muito obrigado!
5 Comments:
Que grande post, estou deliciado.
Essa moça deveria receber o prémio nobel da paz, porque os gritos não eram mais do que a alegria esfusiante de um deja vu da descoberta da cura do cancro.
A arma, representa não a maldade belica, mas sim a luta contra a guerra e contra a desigualdade social.
No fundo, o que eu quero dizer, é que o simbolismo inerente a esta estória é sinonimo de crescimento cultural e civilizacional e que as personagens tipo invocadas são a apologia de um futuro radioso.
Não sei bem se me fiz compreender, mas pelo menos tentei!
Daniel, suponho que saibas quem é a moça em causa... Não a imagino a receber o prémio Nobel DA PAZ (mas e daí... também não imagino o Wilson a receber o prémio Nobel da medicina, a não ser que revolucione as técnicas de acupunctura com recurso a navalha).
Sei bem, creio que já ouvi uma estória semelhante em qualquer lado. Ok, talvez me tenha excedido, o prémio nobel da paz talvez seja exagerado, mas creio que a moça relatada deveria merecer um prémio qualquer... era isso que eu queria dizer!
É pá, mas tão todos do contra é?
Brilhante!!!
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