O Frio (primeiras linhas de um romance alucinado)
Ela observava, distraída, a rua desfilando na montra do café.
—Alguma vez tiveste frio?—insisti, tocando-lhe no ombro.
—Se tive o quê?
—Frio!—repeti.
—Claro que já tive frio!—disse ela, levemente incomodada com a pergunta.
—Não estou a falar do frio que se tem quando se sai à rua à noite sem um casaquinho de malha para proteger os ombros. Não é o frio que apenas incomoda, estou a falar daquele frio que penetra até no tutano dos ossos, que se infiltra nos fluidos do corpo e entorpece o cérebro… Um tipo sente-se indefeso à brava, quando sente o sangue e o sémen congelarem-se-lhe nas veias e nos tomates, matando-o lentamente, a partir de dentro… Um frio de se pode ver, cheirar, ouvir e provar na língua aquele sabor gélido a morte. Frio a sério. O frio que têm aqueles que não têm para onde fugir dele.
Ela olhou-me em silêncio, apertando a carne das bochechas contra os dentes para não chorar.
—Tu tens para onde fugir do frio. Só não o fazes porque não queres!—respondeu, por fim.
—Estamos a desviar-nos da história.—murmurei—Mas dizia eu… Nessa noite estava frio. Só para teres uma ideia, estava tanto frio, tanto frio, que quando um se peidava, os outros juntavam-se logo à volta do cu dele para aquecerem as mãos.
Ela estremeceu com um esgar de nojo. Há muito que eu tinha o hábito de a escandalizar com narrativas grotescas e tiradas obscenas e viscerais enxertadas no meio de conversas civilizadas. Ela costumava afastar-me com uma pancada no ombro e uma careta, chamando-me porco. Desta vez não me chamou nada, nem fez qualquer careta. Apenas um esgar tristonho, sinal de que sabia que, desta vez, eu poderia não estar a brincar.