As maiores vigarices da era pós-moderna: o "emprego ideal"
Este texto estava num dos meus blocos de notas e faz parte de um conjunto de dissertações filosóficas e sociológicas ainda em construção em volta da temática dos maiores embustes e os maiores charlatães da nossa era.
Hoje em dia, dir-se-ia que não existe um único ser humano nas sociedades ocidentais plenamente contente com a sua situação profissional. Tornam-se frequentes desabafos de o trabalho que fazem não ter a ver com o seu perfil, de não se sentirem realizados, da monotonia do quotidiano laboral.
Hoje em dia, dir-se-ia que não existe um único ser humano nas sociedades ocidentais plenamente contente com a sua situação profissional. Tornam-se frequentes desabafos de o trabalho que fazem não ter a ver com o seu perfil, de não se sentirem realizados, da monotonia do quotidiano laboral.
Na era industrial, as reivindicações dos assalariados tinham a ver sobretudo com a remuneração e com as condições de trabalho. Hoje em dia, num período da história em que grande parte da população ocidental trabalha no sector dos serviços, essas reivindicações, apesar de manterem a actualidade, passaram para segundo plano em relação a outras mais “metafísicas”, que se prendem com a natureza do trabalho em si.
Mesmo quanto às reivindicações puramente materialistas, o assalariado da era industrial tinha sempre a hipótese da greve, da revolta proletária, da revolução socialista que, se não resolvia os seus problemas, sempre era uma excelente via de escape para a agressividade latente. Hoje essas manifestações estão profundamente fora de moda e pode dizer-se que caíram totalmente em desuso junto da classe média (com excepção dos funcionários públicos e, ainda assim, sem um décimo da violência dos tempos áureos), de mentalidade pequeno-burguesa e avessa a tudo o que cheire ainda que vagamente a “manias dos comunas”. A classe média, sociológica e economicamente, vive na encruzilhada por se encontrar a meio da pirâmide da exploração, que mais não é do que a velha e biológica pirâmide alimentar aplicada às sociedades humanas. Essa encruzilhada deriva do facto desta classe manter sentimentos de solidariedade com os dois extremos: a solidariedade com as classes baixas deriva do facto de, tal como elas, também a classe média sentir sobre si o peso da exploração capitalista; a solidariedade com as classes altas deriva de, tal como elas, também esta classe ter as suas poupanças e aforros a defender, ainda que a um nível mais modesto. Deste cerco deriva a mentalidade pequeno-burguesa, que se caracteriza justamente pela amarga consciência da sua própria exploração (tal como sucede com as classes baixas), combinada com a falta de coragem para se revoltar contra esse jugo, porque também tem algumas poupanças em jogo (tal como as classes altas). Daí deriva a posição de neutralidade forçada da classe média em relação à luta de classes. Não é verdade que a classe média não tenha consciência de classe, como defendem alguns marxistas mais ressabiados com a evolução da história pós-Perestroika. Ela tem uma mentalidade de classe extremamente arreigada e é essa mentalidade determina a sua ânsia de “estar de bem com Deus e com o diabo”, defendendo da melhor forma que lhe parece possível os seus interesses pequeno-burgueses—pequeno-burgueses, ou seja, burgueses, mas dos pequeninos…
Contudo, a frustração em relação à actividade profissional que aqui se fala não é a frustração que deriva da pura e simples exploração económica: ela é espiritual. O paradigma marxista da alienação revela-se completamente inútil para explicar este fenómeno, cujas causas não são materiais nem economicistas.
A frustração de muita gente em relação à sua actividade profissional deriva de um erro de perspectiva que tem a sua génese na democratização do ensino superior.
As pessoas frequentemente procuram um emprego que as faça sentirem-se “realizadas enquanto seres humanos”, que as “estimule”, em suma, que dê um sentido às suas existências. Este fenómeno é tão mais notório quão maior for o grau de educação dos trabalhadores.
Ao longo de séculos, as universidades eram vistas como catedrais do saber pelo saber, locais de discussão teórica e bastiões de conhecimentos herméticos, apenas acessíveis a uma pequena minoria privilegiada. As universidades serviam para instruir os filhos de famílias ricas, clérigos e nobres, que delas faziam fóruns de debates mais ou menos diletantes e desligados da realidade social: em suma, as universidades serviam exclusivamente quem delas não necessitava para a economia das suas vidas.
Com a democratização do acesso ao ensino superior, em muitos países europeus acompanhada pela gratuitidade, tendencial ou efectiva, do mesmo, as universidades viram-se invadidas por uma multidão de origens humildes que com enorme esforço económico reclamava delas não apenas a transmissão de conhecimentos teóricos pelo simples prazer de aprender, mas como veículo de ascensão social. Pela primeira vez na sua história, as sumidades catedráticas que povoavam as bibliotecas e anfiteatros académicos viram-se confrontadas por uma multidão oriunda da classe média que desprezava a teoria pura e reclamava por “cursos com saída”.
Compreende-se que essas novas gerações, ao fim de anos de grande investimento financeiro e intelectual na obtenção de uma educação superior, pretendessem, com o diploma na mão, ser de algum modo recompensadas por todo esse esforço. Assim, colocam toda a expectativa de uma vida realizada na sua colocação no mercado de trabalho.
Porém, buscam esse ideal no local errado. Aqui vem a dura realidade: trabalho é trabalho—não é suposto ser agradável, não foi pensado como instituição para contribuir para a realização espiritual dos seres humanos, e não há registo de nirvanas atingidos durante reuniões de negócios—ou tão pouco de coffee breaks… O trabalho cumpre, da perspectiva do trabalhador, única e exclusivamente uma função económica que é a de assegurar o sustento do próprio e respectiva família. Porventura retirariam os homens das cavernas prazer das caçadas a animais selvagens? Ou interrogar-se-iam sobre essa questão? Contudo, do ponto de vista da função social e económica, não existe diferença alguma entre caçar um mamute e trabalhar das nove às cinco em frente a um computador. Será que o camponês, cujos pais, avós e bisavós sempre foram camponeses e que nada mais possui além das suas terras, perde tempo a questionar-se sobre se trabalhar no campo será a actividade ideal para si, tendo em conta o seu perfil psicológico imaginativo e empreendedor?
Antes do alvor do epidémico mal de vivre laboral, as pessoas procuravam a razão das suas vidas, aquilo que as fazia sentirem-se realizadas, a outros lados que não à actividade destinada ao seu sustento: iam buscá-lo à família, aos amigos, eventualmente até à actividade política, cultural e artística. Não faziam exigências metafísicas e irrealistas ao trabalho, exigências para cuja satisfação tal instituição não foi idealizada, a e assim tinham uma relação equilibrada do ponto de vista espiritual com a actividade profissional que exerciam.
Pormenor linguístico típico do messianismo laboral: é frequente dizer-se “Eu sou advogado” em vez de “Eu dedico-me à advocacia” ou “Eu sou contabilista” em vez de “Eu trabalho em contabilidade”. Completa e inexorável projecção da imagem do próprio ser na actividade que se realiza para alcançar o sustento. Deveria haver terapias de grupo subsidiadas cujo objectivo fundamental seria criar seres humanos que, findo o processo terapêutico, afirmassem com toda a convicção “Advogado/Contabilista/Pastor/Arquitecto é aquilo que eu FAÇO. Aquilo que eu sou é infinitamente mais vasto, mais complexo e mais profundo!”.
O mais grave é que existem indivíduos—sobretudo psicólogos e técnicos de recursos humanos, genericamente chamados conselheiros vocacionais—que vivem de inculcar e perpetuar esta loucura na mente das pessoas. Estes estão entre os maiores charlatães da era pós-moderna!